Precisamos falar sobre isto

Parto, neste momento, da vontade de não viver. Sísifo, condenado, quer desistir de empurrar a maldita pedra até o topo da montanha de onde ela sempre rola.  A paisagem lá fora já está pálida e fria. Não me comove mais. Viver é enorme e pesado e morrer é simples. Sento-me na borda do abismo onde o vento, no vazio, me estende os braços e nele vejo um colo para descansar. Este é o momento precioso entre o ser e o não ser. Eu nada sei disso. Estou engolida pela descrença, crivada de pensamentos ruins que preciso calar. Este é o momento precioso entre o morrer e o acordar. Eu nada sei disso. Apenas aguardo o impulso final. Sou a mais translúcida das borboletas voando mar adentro. Só vejo paz em dissolver-me no todo. Então, percebo no horizonte, no encontro entre os topos dos prédios e o céu, uma fissura. Sutil, como se fosse um minúsculo defeito na paisagem. Sim, a abóbada celeste está rachando ali. Tento voltar para o meu abismo. Não posso. Há uma fissura no céu, um defeito na perfeição do meu fim. Coloco os óculos de volta no rosto, comprimo as órbitas tentando divisar o absurdo deste céu fraturado. Não é uma alucinação. Parece até que aumentou um pouco. Grito para os outros que balançam as pernas sobre o abismo hipnotizados: lá! uma fissura! E então vejo: no parapeito do edifício, na parede do banheiro, na amurada da ponte, na janela do quarto onde me acabo: fissuras.  Os prédios, o céu, o abismo... é tudo cenário. E não é mais a morte no vazio me abrindo os braços: é a dor. Não fujo mais, não penso mais, apenas salto para o colo dela. Agora as fissuras estão em mim, por todo o corpo, em rios de dor, não resisto, não luto. E a mágica acontece: não sou mais o ser que não cabe, o feio, o gordo, o calvo, o deprimido, o devedor, o maluco... sou o todo ilusório que a humanidade criou, sou o cenário equivocado que explode. Esta a morte que vim para experimentar e sobreviver. Então a dor abraçada me devolve ao topo do penhasco no cenário refeito, numa realidade igualmente inventada, mas onde peso menos. Alguma felicidade virá. Felicidades são instantes. A dor virá, é parte, foi autorizada, não é mais um fantasma que me espreita. A morte também virá e espero estar distraída olhando a fissura no cenário sem acreditar tanto na importância dos prédios e no peso do céu. Acordei da fantasia de uma felicidade asséptica de redes sociais e multiversos. Acordei da necessidade de controlar até mesmo o fim.  Viver é simples e morrer pode ser todos os dias. Morte também é parto.
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As taxas de suicídio, principalmente de jovens, vem crescendo de forma alarmante no Brasil e no mundo. Dói mas é URGENTE falar disso. Não se cale.
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Comentários

  1. Vera Vivas16/5/22 10:00

    Todo mundo quer felicidade,ninguém quer dor,mas você não tem felicidade sem um pouco de dor. Tempos difíceis virão!Mas o sol e borboletas lindas voltarão a brilhar.
    Tenha paciência amiga,vai ficar mais leve.
    Bjos
    Vera

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    Respostas
    1. Vera querida, eu estou bem colada a esta vida apesar de também ter meus momentos de querer acabar. Como os índices de suicídio tem aumentado muito resolvi escrever este texto e tentar achar junto daqueles que estão na beira do abismo uma razão para ficar. Bjooo

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  2. Se puder gostaria de te-lá em um Webinar. Não consegui seu contato, más o meu @veraaguiar

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  3. Essa foi a melhor definição de Vida que vi nos últimos tempos.

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  4. Lindo ! Dor também é um parto.

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  5. Viver dói!! Amar ameniza. AmoTe!! ♥️

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  6. Viver é simples e morrer pode ser todos os dias..... é isso!

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  7. Irene Gamboa17/5/22 22:08

    Precisamos aceitar/entender que viver e morrer são parte intrínseca da Vida! Que não há bem que sempre dure e mal que nunca acabe! E que no meio de tudo isso misturado, podemos experimentar a felicidade!

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  8. Anônimo8/7/22 14:16

    Sentimentos muitas vezes nos aprisionam.....

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