A minha história verdadeira

Há 3 meses minha filha de dezesseis anos se matou. Eu estou aqui para dizer o que comecei a aprender antes dela partir. O que, hoje entendo, me foi ensinado para que eu soubesse fazer parte da história dela. Aprendi que você narra a sua vida, cria esta narrativa, seja ela qual for. Não existe A realidade, O fato. Existe a história que você conta... que você se conta. E vale para meninas que se matam e para tudo mais. Então, te conto agora o que escolhi me contar. Após um ultrassom, no terceiro mês de gravidez de trigêmeos, soube que um dos bebês tinha quase 70% de chance de ser portador de síndrome de down. E o fato deste bebê carregar uma deficiência poderia resultar no aborto espontâneo dos três. Uma das possibilidades, neste caso, para evitar riscos para todos, seria tentar uma redução: retirar apenas aquele feto. Mas, a redução também poderia resultar na perda da gravidez. Sem paz no conhecido fui bater na porta do mistério. À noite, na minha cama, conversei com a criatura no meu ventre. Que ela viesse com a deficiência ou que viesse o aborto espontâneo, que viesse o que viesse, eu aceitava, eu escolhia não fazer a redução. Mas, se a gravidez não corresse risco, que ela, a criatura, me deixasse saber. Voltei no dia seguinte ao mesmo aparelho de ultrassonografia, com o mesmo médico, na maternidade mais conceituada de São Paulo, e a alteração indicativa de síndrome de down havia desaparecido. A gravidez trigemelar seguiu com rara tranquilidade até que os três vieram ao mundo normais para os parâmetros conhecidos. Entre eles, estava aquela menina.  Complexa, como ela mesma se definiu em sua carta de despedida. A que demorou muito mais pra deixar a UTI neonatal, a que brigou com a vida desde a chegada e sempre. A que não era miss simpatia, e batia de frente sem dó. A que falava duro e parecia ter muito mais idade do que tinha. A que sustentava seu “não” a custos inimagináveis para uma criança. A que um dia me confessou que não era feliz neste mundo e só resistia para não doer em mim. A que decidiu e não deixou ninguém se colocar entre ela e seu projeto de fim. Nem psicóloga, nem psiquiatra, nem super tia, nem irmã amorosa, nem oráculos divinos, nem a mãe que amava. Faz 3 meses que ela se foi e hoje me lembrei daquele ultrassom. Não era sobre o conhecido, a síndrome de down, o aborto espontâneo: era sobre o mistério. A mensagem esteve lá em caracteres que o conhecimento ainda não era capaz de entender, nem solucionar. Ela se matou e uma catapulta de dor me lançou muito além das terras da ciência, dentro da verdadeira incógnita em que boiamos. Sabemos e não sabemos. Estamos fadados a sobreviver a esta angústia que nos move em direção a ultrassons, terapeutas, psiquiatras, gurus... Tentando o impossível controle absoluto... Sabendo que, sabendo muito, ignoramos muito mais. O que nos resta? Escrever a história. Escolher o quanto de ciência, fé, amor, humildade, esperança, mistério colocar em cada linha. E esta é a versão que escolhi me contar. Um dia, um pedaço de consciência que habitava um outro universo ainda não alcançado pelo saber científico, precisou vir a este mundo. Tinha lá suas razões e seus tratos com o divino que eu não sei. Ia pelejar, mas trazia na mala dores que poderia, como qualquer um, não aguentar. Acharam por bem, a criatura e o mistério do universo, perguntar à possível mãe até que ponto ela toparia. A mãe abraçou o desconhecido e respondeu que toparia tudo. Ela pôde escolher. E a menina veio e fez o seu possível. E esta será a história verdadeira somente porque salva a menina e a mãe da culpa cruel e inútil. Aprendi: meu único super poder é salvá-las com esta escolha. A magia da aceitação, iniciada naquele exame de gravidez, apenas se completou. A história real, o fato, não existe, assim como não existe mais a menina para tantas perguntas que carrego. E eu poderia pegar na prateleira demônios, impotências, dores eternas para arrematar a existência dela... ou não. No fim é tudo imaginário, é tudo "venha o que vier". Escolhi o “não” e o defenderei a qualquer custo, como ela me ensinou. Não às culpas. E essas seremos nós duas escritas pela generosidade amorosa do universo. E você? Que histórias escolhe se contar?

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Comentários

  1. Meu Deus, como vc é grande, Safo. Aprendendo vc me ensina a aprender, o que não é nada fácil. A história que tento contar é modificada a cada minuto. Com a partida de sua menina tento aprender a ser tantas possibilidades que me perco nas idas e vindas. A cada dia tento um início. Era uma vez... e me perco em reticencias. E a história não sai do começo.

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    1. Me sinto pequeninha, mas confiante no universo. As possibilidades estão na sua frente. E há sempre uma história amorosa a escolher se acreditamos que a essência, a base, é amor. Boa sorte.

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  2. Oi Nanna, eu leio e releio as tuas palavras e a tua narrativa faz tanto sentido. Sou tão imensamente grata ao universo por testemunhar a TUA forma de compreender o mundo, as relações e a vida. Quanta entrega e generosidade em cada vírgula (um suspiro em cada pausa). Tu me falou no vídeo 9 (SAFO CHEIO) sobre a aceitação e o teu texto foi tão perfeito, como tantos outros textos teus (experiências de vida). Que todo esse amor siga sendo fonte. Meu total respeito, amor e admiração por quem és... Um abraço do tamanho do universo pra ti e para todos que amam a Celina. Beijos, Letícia

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    1. Obrigada Letícia, muito gostoso ouvir você. Fique bem.

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  3. Ufa!!! Leigo e impotente penso que, numa situação dessa, não saberia contar historia nenhuma... Por sorte e graças a Deus, sei ler... Não sei se vc sabe mas vc é forte, extremamente forte... Obrigado por nos
    Ensinar...
    Fique em paz,
    Marcos
    Abraço no coração!!!

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    1. Ô meu amado, eu sou é muito amada pelo universo e consigo ver isso. Obrigada.

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