Abismo 7


Não perdi ninguém próximo na pandemia. Mas tenho andado angustiada desde que sumiu, dali da esquina, José o pipoqueiro. Olho da janela em busca do homem, remoendo a culpa de tê-lo matado seis meses atrás. Eliminei o pipoqueiro da minha rede de relacionamentos após a milésima vez que ele defendeu o presidente. Tentei ser tolerante, mas tudo tem limite. José cruzou meu limite com sua disponibilidade de morrer para ficar vivo. O presidente tem razão, mastigou atrás daquela máscara de pano fina e inútil, aquele deboche de máscara. Ele tem razão: pobre não pode parar como a senhora. Morrer de fome é mais certo que morrer de gripe. O vírus, pelo menos, poupa muita gente. E riu uma risada nervosa, o pipoqueiro. Eu ali comprando pipoca pra ajudar, tive raiva grande do José e sua escassez medonha. Vestindo o abandono todo dia de manhã e escorregando pra rua, pra chuva de canivetes.  Acostumado a dividir a calçada com o vírus mortal, a bala perdida. Tão privado de humanidade que deu pra se sentir seguro no colo do carrasco. E não suportei mais. Dei as costas e corri pra dentro do meu castelo e ordenei que recolhessem a ponte levadiça. Não sou obrigada a testemunhar o bom e velho pipoqueiro da esquina dançando feito bobo da corte no fio da navalha. Então a pandemia redobrou a pancada e José sumiu. Recontei hoje os vivos no meu castelo e lamentavelmente, descobri que não bastam. Senhores moradores do meu mundo: eu perdi José, o pipoqueiro, na pandemia. Ele é um homem magro com cabelos brancos brotando na fronte,  de estatura mediana e olhos muito vivos e doces e uma risada que engole a gente. Concordava com o presidente, mas deixou um buraco de tristeza na minha esquina para onde todas as minhas certezas escorrem. Quem souber dele favor vir correndo me salvar. A ponte está abaixada. Amorosamente abaixada. Não a recolherei mais.
*
*
*

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Pequeno Príncipe e a Cobra

Ilusão

Platão e o Macaco Pelado