Nada lá fora, só corpos

Filme "Ensaio sobre a cegueira"

O mundo na minha janela converteu-se em uma foto surreal da normalidade perdida. Não fossem algumas pessoas passando de máscara na minha rua, nada, absolutamente nada na paisagem me causaria qualquer estranhamento. O Jasmim Manga segue sua toada quase sem folhas rumo ao inverno. Alheio às tragédias humanas. O outono chegou na hora combinada e com ele as tardes mais cinzas e as temperaturas mais frias e os pores de sol mais lindos. Minha janela mente para mim que a vida segue e seguirá a mesma, mas rumores chegam pelo noticiário e dão conta de que já somos mais de 4 mil mortos. Não há 4 mil corpos na minha rua, só um vento suave. E eu poderia escolher o vento e negar a pandemia. Ela não veio, é tudo um filme, um sonho mau. Eu poderia inventar minha verdade e seguir num mundo sem pandemia por algumas horas mais. Eu poderia me juntar às manifestações de rua pedindo a volta ao trabalho. Eu poderia me colocar sem máscara colada aos homens e mulheres do executivo brasileiro num pronunciamento à nação. Eu poderia enfiar as garras bem fundo em algum delírio de país, de felicidade, de dignidade, de segurança, de grandeza. Mas dispenso a fotografia na janela. Aperto com força os olhos e ao abri-los de novo eu vejo, agora posso ver: 4 mil corpos amontoados na minha rua e na esquina uma fila de caminhões que chegam para despejar mais uma centena, médicos e enfermeiros vagando sobre o asfalto, atarantados e exaustos, coveiros cavando valas comuns no espaço exíguo da calçada e pobres amontoados na praça ao lado morrendo sem socorro... no meio desta cena dantesca uns seres estranhos dançam vendados enquanto pisoteiam os mortos. Não sei dizer que tipo de mutação humana são mas eu, na janela, escancaro bem os olhos. E agradeço a graça de ver.
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