Álcool 70


Está decretado: eu odeio as compras de supermercado. Profundamente. Estou aqui isolada em minha casa a aguardá-las. Meu marido, soldado designado para cruzar o campo minado de vírus e retornar com os mantimentos, já avança no front com a enorme lista na mão. Somos cinco pessoas no auto-cativeiro e temos mais fome do que o normal. Efeito emocional da quarentena. Significa que, hoje, o soldado voltará com uma, duas, três, quem sabe quatro sacolas cheias. Malditas, desgraçadas. Todas carregadas de caixinhas, saquinhos, forminhas ameaçadoras. Estou aqui sentada na cozinha em estado de torpor a aguardá-las. Com um spray de álcool 70 graus na mão direita e no meio da cara uma expressão congelada de desânimo. O vírus talvez seja evitável, adiável... as hospedeiras compras de supermercado, não. Já as odiava antes, mas, levemente. A peregrinação entre os corredores labirínticos do supermercado, as prateleiras coloridas onde produtos e marcas se embaralhavam indecifráveis, a fila morta do caixa. A criatividade desperdiçada em encaixar os produtos em uma suposta organização ideal. Mas o fundo do poço inexiste. Tudo bem, vivendo no Brasil, já devia ter me acostumado. Mas não. Estou aqui prostrada na cozinha me negando a aceitar que em alguns minutos elas estarão lá, esparramadas sobre um plástico no chão do escritório à minha espera. Com seus milhares de lados, dobras e ângulos capazes de abrigar um único e microscópico e mortal vírus. E os grãos de arroz? Haveria um intrépido micro-organismo do mal cavalgando um grão de arroz no meio daquela barafunda de coisas? As compras agora dão de comer ao meu lado paranoico... E eu as odeio. Do fundo da alma. E se morrêssemos de fome? Não seria mais digno? Um estalo seco vem de fora pela janela da cozinha, um som grave como um disparo de fuzil, o detonador acionado de uma granada... minha alma gela... é o portão da garagem se abrindo. Aponto o spray de álcool 70  para o meu desalento e aperto o gatilho. Chegaram.
*
*
*

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Pequeno Príncipe e a Cobra

Ilusão

Platão e o Macaco Pelado