Filhos

Foto Andrea Pasquini
Os filhos chegam ao mundo com suas malas. Dentro delas muito mais do que a genética pode nos ajudar a prever. Filhos carregam uma história que não nos pertence. E é dolorosa esta impotência de ser mãe ou pai. Difícil abrir mão da ilusão de que podemos salvá-los sempre. Não podemos. A eles cabe salvarem-se no final das contas. Podemos ensiná-los a nadar, mas não há garantias de que não se afoguem. E ganhamos muitas ferramentas para medi-los, pesá-los, sondá-los, escaneá-los, o que aumentou nossa responsabilidade sobre suas naturais deficiências. Se algo neles falta, torna-se eterna responsabilidade nossa saneá-los. E neles falta muito. Mancam, sofrem, se desesperam, não dormem, não comem, não querem ir à escola. Filhos são a fronteira final da nossa ilusão de controle. Eles capengam e nós nos debatemos com a conclusão de que não somos deuses. Fazemos o melhor e ainda falta porque a resposta não está em nós. Somos só companheiros deste trecho da viagem. No antes e no depois de nós, uma alma inteira coleciona vidas que fazem dela criatura única, inescrutável, um eterno mistério mesmo aos olhos da mãe e do pai que vigiam obsessivamente. Os filhos chegam ao mundo para nos ensinar a finitude. Vamos acabar e eles seguirão. Então criamos as criaturas para depois do nosso fim. Não para nós. Criamos para os tombos que não veremos, que não acudiremos, nós e nossa transitoriedade. Nas malas, que não conseguimos ver por inteiro, filhos trazem dores, acertos de contas, venenos e antídotos. E um mapa do caminho que desenharam antes de vir. Revelações que vão nos chegando desesperadoramente a conta gotas e confirmam nossa imanente solidão. Filhos se vão numa tarde comum com sua mala sempre faltando o maldito casaco de frio. Filhos nunca sentem o nosso frio. Eles se despedem sobreviventes e se lançam no vento. E voltamos ao oco primordial do qual eles nos distraíram por longo tempo. Eles são indecifráveis passageiros no vagão do amor.  E este é o máximo e talvez realmente o único que podemos fazer por eles de fato: amá-los de passagem. Amá-los com nossa fragilidade, nossa boca sem respostas, nosso possível. Amá-los e entregá-los ao universo que verdadeiramente os pariu. E confiar que eles carregam na mala os venenos e os antídotos e um mapa único, incompartilhável do caminho.
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Para Andrea e Elô, irmães.
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Comentários

  1. O silêncio toma conta de minha alma
    Um dia peguei minha mala e sai a procura do meu mapa.
    Hoje tomo consciência que gerei seres com suas próprias malas.
    Obrigada pelas palavras.

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    Respostas
    1. Oi Fátima, que estas malas te encham de boas surpresas. Obrigada pela visita.

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  2. Como conseguiu ler o que levo no coração?! Quanta sensibilidade em suas palavras!

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  3. Olá Marília, fico muito feliz que tenha vindo aqui. Nossos corações estão conectados!

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