O Menino e o Abismo


O moleque era um fenômeno. Desde que começou a dar passinhos na sociedade era assim: quase perfeito. Bom em tudo. Aos cinco já era expert no dominó. Um arremedo de gente e já sabia dizer a marca de qualquer automóvel que você apontasse na rua. Eleito, nos primeiros anos da educação infantil, o menino simpatia de quem a maioria queria ser amigo. Nos desafios acadêmicos: um trator. Nem as piruetas da história, nem os labirintos matemáticos, nem os mistérios da ciência, nem as complexidades da língua portuguesa, nada era páreo pra ele. Sempre dez ou quase, sempre entre os melhores da sala. Nos esportes também não se acanhava. Observá-lo, aos dez anos, acertando uma sequencia implacável de jabs num saco de pancada, numa aula de boxe cercado de adultos, era hipnótico. Nem precisava ser engraçado, espirituoso, mas era. Por onde passasse, as mães dos coleguinhas retornavam elogios. Educado, divertido, carinhoso com as crianças menores, eterno convidado para a casa de amigos nos finais de semana. E a gente foi se acostumando com a unanimidade do menino. Deu umas alterações comportamentais na escola, talvez o excesso de predicados tivesse desandado um pouco a criatura e atrapalhado seu amadurecimento emocional. Mas, alvejado pelas críticas, se mostrou disposto a corrigir o rumo. E retomou o lugar no pedestal dos predestinados ao reconhecimento. Pode soar estranho, mas eu olhava aquele ser deslizando sem esforço pelo universo com temor. Tenho uma história de pelejas e superações que me é cara. Esta trajetória inventou em mim uma crença de que a dor é o pedágio do amadurecimento. Tenho péssimas notícias de gente pra quem tudo foi fácil. Vi adultos inertes, frágeis, sem motivação ou resiliência brotarem da superfície calma e doce de um lago artificial criado por pais para seus filhos crescerem sem nenhum susto. A falta de dor do menino me incomodava. Via crescer lentamente em sua sombra, como um mofo do caráter, a intolerância à frustração. E me pus a criar uma corrente contrária, a pegar no pé do menino, a cruzar seu caminho com meu “não”. Nas oportunidades possíveis, como naqueles momentos em que ele se propunha a passar horas diante de uma tela com um console de jogo na mão, lá estava eu de “não” em punho. E cravei alguns limites dolorosos na pele dele como quem tentasse encrustar diamantes numa joia humana. Fui dura muitas vezes na pretensão de trazer o menino para algum fundo mais assustador que a comum e superficial bem aventurança. Medo enorme de que ele seguisse verde no pé de gente, perfeito e verde e disfuncional, morto para a gastronomia do viver. Mas outro dia o menino me disse que não estava enxergando bem de um dos olhos. E o médico veio com seu diagnóstico colocar um abismo na vida dele. Tem uma doença rara na córnea. Uma deficiência que provavelmente estará sempre ali lembrando ao menino que ele é falho, imperfeito, torto.  Uma coisa que veio pra ele lidar, não pra resolver.  E não sei o quanto esta córnea frouxa se atravessará no seu caminho feito rio, porteira, desmoronamento de terra, valeta... Confesso que senti um pouquinho de tristeza e medo pelo menino que um dia pôde tudo. Medo do abismo pesar demais na mochila de alguém tão jovem. Mas outra voz em mim diz que o príncipe, ao completar 15 anos, apenas espetou seu dedo na roca, como tinha de ser. Dormirá criança e despertará um homem grande, como tinha de ser. E despencando vez ou outra no abismo descobrirá, na fragilidade dos olhos, suas asas.
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