Miserável


Eu carrego em mim, embutida, misturada à carne, as carências da minha infância. A necessidade de negociar tudo, sempre, quase como um cacoete. O olhar que corre para a coluna do preço no cardápio do restaurante. Reflexos distantes da filha do motorista de caminhão que muito raramente foi a um restaurante. Eu carrego guardada, talvez com excesso de zelo, a imagem da geladeira vazia e a história dos meus irmãos vendendo anáguas na vizinhança para poder comprar carne. Eu carrego com cuidado, não largo, tenho por elas um amor vital que aguou minha raiz. Ancorada nas pelejas da minha família grande e seus improvisos na sobrevivência, desenvolvi uma alergia ao luxo, uma incapacidade de entrar numa loja cara e comprar sem olhar o preço. O gesto não me dignifica, não me engrandece, não me dá orgulho. E trai a criança que eu fui. E eu entendo que cresci e não preciso mais viver com ela na boleia do caminhão do pai. Tem sido longo e exaustivo o esforço de fazer esta menina calçar salto e  pisar nos tapetes vermelhos do mundo. E já consegui ensinar a ela muitas riquezas: primeiramente a de amar-se, valorizar-se, respeitar-se porque não poderia sobreviver à miséria da autoestima. A permissão para deixar o borralho e ser reconhecida, celebrada, coroada. Mas continua espichando o olho para os números do cardápio. E, sem que ninguém perceba, os leva sempre em consideração na escolha do prato no restaurante fino. E não precisava. Porque podemos hoje, que somos uma senhora, fechar os olhos e pagar. Mas eu que a amo, que a conheço tão fundo, em nome do respeito e da admiração pela sua história de catar caquinhos no chão e fazer vitrais tão necessários, me limito a rir das economias dispensáveis dela. São como uma boneca velha e encardida guardada no fundo escuro de um guarda-roupas, feia e inútil, mas raríssima como o mais puro dos diamantes apenas porque um dia foi a única boneca possível.
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A boneca acima foi feita pela minha Vó Laudemira que era pobre e quase não enxergava mas me ensinou a ver longe com o coração.

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Comentários

  1. Me vejo tanto quanto no espelho da miséria e sigo forçando a naturalidade do esbanjo mas ele é como um vestido apertado. Não é o esbanjo e não é a miséria. É a leveza de receber a feira na porta de casa. Te amo.

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