Alguma Possivel Esquerda
Eu costumava ser de esquerda.
Parece que não sou mais. Parece que não sou mais suficientemente de esquerda.
Parece que minha carteirinha foi cancelada. Acabou. Os sintomas do fim
começaram leves, pensei que eram só rebotes da minha irritação generalizada, a
menopausa chegando. Comecei a me irritar com discursos de esquerda. Alguns que
eu mesma havia pronunciado à exaustão em eras não tão remotas. Começaram a não
soar mais a “olha como somos legais”.
Mas eram só ruídos ao longe no começo: uma sensação genérica
desconectada de qualquer racionalidade visível. Achei que iria passar. Artista,
formada em Humanas, politizada, crítica, eu só podia ser de esquerda. Mas a
história do meu país foi nos levando para uma estrada apertada demais e, de
repente, só havia duas mãos. E eu tinha que caber numa esquerda que eu não
cabia. Quando os discursos se acirraram, meu deslocamento ficou nítido e
começou a me incomodar mais. Fui percebendo em mim e nos arredores a arrogância
dos sensíveis e o autoritarismo dos auto-eleitos salvadores e porta-vozes das
vítimas. A violência intrínseca em se julgar dono do altruísmo e da bondade. As
receitas exatas e herméticas diante de um país complexo. As certezas
inabaláveis no meio do caos. Os narcisismos intelectuais. A armadura
inexpugnável da boa intenção para com o pobre. E fui me afastando das certezas
e afundando na perplexidade das dúvidas. Uma vez desgarrada da família, passei
a ser olhada com desconfiança e até desprezo por alguns. E aprendi, no olhar
desapontado de amigos, que abraçar as diferenças vale apenas para as diferenças
que nos propomos a abraçar. E só encontrei paz na alergia total aos
absolutismos, na aversão a qualquer decreto imaculável. E meus ouvidos se
aguçaram na escuta de ideias. Passei a garimpá-las em terrenos diferentes,
distantes do meu quintal e tentei olhar para elas sem minha fôrma. Não é fácil.
Quanto mais conhecemos algo, mais ficamos cegos para o seu avesso. Hoje só
garanto que tenho menos certezas que antes e só chamo de porto o caráter das
pessoas. E tenho por perto, algumas, não muitas, pessoas com convicções
diferentes, boa gente. No meio delas, um esboço de caminho possível. Não
é o ideal de ninguém ali, não é o meu sonhado nem o deles. Mas o possível de
hoje. E contem erros. Naturalmente. Mas é só um caminho e não um trono vitalício no reino
da verdade. É bem provável que eu, artista, formada em Humanas, politizada, crítica, continue mais à esquerda de algum meridiano
filosófico, mas isto, hoje, é ponto de partida para trocas e não ferro de marcar ou bandeira de
conquista.
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