Kafka Brasil

Do livro "My First Kafka"
Acordo no Brasil kafkanianamente transformada em uma barata ideológica. Não entendo como tudo aconteceu tão rápido e em uma noite apenas deixei de ser gente e virei um bicho tão i-mundo. De repente, minhas antenas não entendem mais os discursos saudáveis dos líderes do país. Capturo palavras soltas. Parece que falam de uma ameaça comunista. Esforço-me com meus ouvidos de barata para entender... não consigo. Tentam me alertar ainda de um perigo nas escolas... Depois de muito fustigar meu cérebro de inseto, entendo que tem a ver com sexo... Velhos de cabelo muito tingido mexem suas bocas buscando se comunicar com a barata ideológica que me tornei... as frases chegam até mim como zumbidos e chiados... Parece que Jesus está envolvido em algo... Jesus, comunismo, sexo, escola, ameaças... Faço um esforço supra-humano para juntar as palavras num contexto lógico. Não consigo.  Coloco minha cabeça de barata na janela e tento ver algo lá fora que faça algum sentido para o bicho esquisito em que me trasmudei. Vejo um povo desconhecido queimando bruxas em fogueiras, correndo atrás de homossexuais com pedras, amordaçando professores, inferiorizando mulheres... Em que ano estamos, mesmo? Jurava que havia deitado em minha cama numa noite de 2018. Minha mente de barata se debate incapaz de respostas satisfatórias.  Então, um clarão de lucidez me sacode: e se eles percebem que não sou mais gente? Que me tornei diante dos seus óculos fundo de garrafa um bicho asqueroso digno da sola de seus sapatos divinos? Corro com minhas seis pernas para a escuridão de alguma fresta no piso. De lá sigo escutando brados do que agora é chamado humanidade. Não me mexo. Na fresta descubro outras baratas silentes, atarantadas, incrédulas. E quando nossas antenas se tocam finalmente uma palavra enche meu cérebro de compreensão: resistir. 
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