Ode ao Cão
Carrego presa à coleira esta parte fundamental de mim: o
cão. Nela encapsulada meu bicho esquecido. Face minha que apaguei para viver em
suposta paz e abundância entre os da minha espécie. Cuidei de mantê-lo perto
quando ainda era lobo. Cuidei de mantê-lo junto para nunca me esquecer de quem sou.
Salvaguarda da minha natureza duramente domesticada. E quanto mais me afastei de mim, maior se
fez meu amor por ele. Disfarcei-o em objeto dócil do meu lar, adaptado ao meu estilo, e projetei nele toda sorte de humanidades que ele suportou alegremente. Mas não é esta submissão que me fascina, pelo contrário, é a barriga sempre encostada ao solo, o olhar perdido de quem ainda sabe enxergar com os ouvidos, a contemplação meditativa do nada com a cabeça abandonada no chão, o despudor de rolar as costas brancas no barro e a capacidade superior de perseguir rastros invisíveis. É o que fui. Ele é minha alma animal esparramada na grama, quarando ao sol, indiferente às catástrofes políticas, ambientais, humanitárias. Ele é minha
porção primitiva que desconhece mágoas e abana o corpo em êxtase quando o ser amado chega, totalmente esquecida de qualquer impaciência
hostil. Ele é uma lembrança doce do ser em mim que simplesmente flui na existência. E até sua finitude sem alarde, de ser essencial mas substituível, me recupera uma despretensão saudável. Deito-me de vez em quando com meus cães no chão de cimento da garagem, em paz
por ser parte da matilha, aceita como igual. Silencio o pensamento e fico bem quieta com medo de que eles me achem pouco bicho. E os cães me acolhem e me salvam. Jamais
saberão o bem que me faz poder soltar o mosquetão da coleira
e deixá-los correrem livres e inteiros como eu dificilmente voltarei a ser. Acho que não sabem. Penso, obrigada a pensar, que não saber é sua dádiva e sua imensidão.
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