Eu, a brasileira legal

Ouvi de uma amiga e corri a pesquisar em mim esta sensação de ser refém no meu próprio país. É como se uma terrível maldição tivesse se abatido sobre nós, os bons brasileiros, e nos lançado à piscina de lama sem escadinha na borda, onde temos que nos debater diariamente com toda sorte de bandidos, estúpidos, atrasados, gentalha. Sim, vivemos a sensação que nos mortifica de que isto tudo é um grande acaso do mal, uma escrescência do destino, uma espinha nojenta que surgiu de manhã incrustada na nossa testa e da qual precisamos nos livrar. Não conseguimos estabelecer qualquer conexão racional entre o nosso eu legal e este caos político-econômico-social: somos bons brasileiros, pagamos nossas contas, somos educados. E ai se opera a falha que nos condena a girar eternamente no limbo de cores diferentes: não tendo eu nada a ver com isto, deve haver um culpado em algum lugar. Sim, em algum canto obscuro do país uma fonte plantada pelo diabo em pessoa verte continuamente produzindo criaturas do mal. E estas criaturas, brotadas do nada, estas com quem nunca convivi e sequer sabia que existiam, de repente, estão liderando a nação. E quando fica muito absurdo para mim mesma fechar a equação da maldição gratuita e da evolução inexplicável dos zumbis rumo às principais cortes brasileiras, elejo culpados mais perto: o povo da região tal, o pessoal do partido tal, os seguidores do candidato tal. Acho confortável eleger culpados inconsciente de que, ao vestir a faixa da vítima, estou tirando de mim toda e qualquer capacidade de reação. Vítimas de forças ocultas só podem mesmo se prostrar nuas diante do carrasco imponderável e tomar chibatadas, cusparadas na cara. Depois elas devem vestir sua roupinha do dia a dia e ir tocar a vida. A noite elas podem, no máximo, gemer diante de alguém na mesa de jantar que irá gemer em resposta confirmando o terrível azar que tivemos de não nascer na Suécia. Esta sou eu muitas vezes. E não há maldição nenhuma. Não estou condenada a nada. Nasci em um determinado país cheio de qualidades e defeitos num processo histórico de amadurecimento moral e cívico não menos penoso que o de muitos países da Europa. Sim, muitas cidades para onde penso hoje em me mudar já foram no passado campo aberto para o banditismo, as doenças, a miséria. Evoluíram. É este o país que eu tenho, o que foi me dado desta vez. E sei que estar mergulhado na história, no momento necessário das desintegrações, é mesmo doloroso. Não se limpa um tumor sem abrir a carne e passar pelo odor fétido. Não se mata um parasita sem que ele venha a luz e você precise olhar profunda e penosamente para suas garras. O tumor, o parasita, não são alienígenas invasores do nosso jardim tão bem cuidado. Eles nasceram para além do muro onde achamos que o jardim não era nosso. Aquele lugar que não era da minha conta, aquela sujeira no chão que eu não joguei, aquela criança abandonada que eu não pari, aquela negociata que eu vi mas não participei e só olhei calada com ar de indignação: é tudo meu. E para acabar com minha ilusão de isolamento da brasileira boa, o lixo, a criança, o bandido, o corrupto começam a pular o meu muro, para dentro da casa. E eu na mesa, a noite, diante da minha família escolhendo a fantasia comoda de me chamar de vítima. Eu não serei vítima. Há milhares de formas de cuidar agora mesmo do meu jardim que não está mais instalado atrás do muro da minha casa. Ele está lá fora e tem mais de 8 milhões de quilômetros quadrados. Há uma infinidade de atitudes possíveis que não tomei porque era refém da minha fantasia de boa brasileira que já faz muito. Chega de gemer, este é o país que tenho e ser uma boa vítima agora é muito pouco, amiga, é preciso assumir que somos autores, o tempo todo, até quando não sabemos ou não queremos. E não há nada que tenha acontecido sobre a pele deste país em sua história que não seja responsabilidade nossa e não possamos recriar. Esta a crença libertadora e fértil. Vítimas se imobilizam em nome de um ideal que não veio, autores fazem história com o possível.
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