Caríssima Escassez

Miséria mais cara é a miséria dentro. Carrego uma. É raro, mas ainda me pego pensando se as ideias não acabam. Se não devia economizá-las, estocá-las, guardá-las para amanhã. Já superei, é verdade, o tempo de achar que a coisa criada é minha. Já entendi que todas as frases belas que me acometem passaram antes pela cabeça de um poeta egípcio há milhares e milhares de anos e por milhões de outros poetas desde então. Já sei que aquele poema redondo brotado do nada veio de alguma sementeira que não me pertence, instalada além desta minha vidinha. Cada vez menos tenho apego às obras que saltam pra fora dos meus poros. E quanto mais as deixo passar sem segurar, mais elas chegam. Não quero tê-las, vendê-las... Meu primeiro impulso é sempre jogá-las janela afora onde tiver qualquer montinho de terra fértil. Só depois junto algumas num livro por conta de um certo fetichismo que tenho por livros de papel. Mas carrego ainda uma brasa acesa de escassez. A danada resiste à generosidade implacável do universo que me banha todas as manhãs com sua fartura explícita. Hoje, por exemplo, o azul do céu da megalópole estava indecente de tão lindo. Contra toda a poluição que eu espero dos invernos na minha cidade, o multiverso cismou de fazer um haicai azul e publicar sobre a minha cabeça. Estava lá quando acordei. De graça. E eu, engolida por aquele impensável céu consegui inventar na mente um medinho de escassez. É difícil abrir mão dela. Fui criada acreditando na escassez compulsória e duvidando da fartura. Paguei caro pela ideia de um mundo onde naturalmente o lençol é curto, e para cobrir uns, obviamente, temos que descobrir outros.  Ganhei de brinde um medo atávico da fome que não passarei. Um medo que me faz viver na fome e, às vezes, sequer enxergar os céus azuis no caminho. Possuo estas desgraças desde sempre e tenho dificuldade de perdê-las. E não estou sozinha. Há, inclusive, mulheres e homens terrivelmente ricos  vivendo a escassez de formas inimagináveis, e buscando mestres que os ensinem a usufruir uns minutos da sua impagável conexão com a fartura dentro. Eu sou tão amada que os mestres batem na minha porta todo o tempo, nas mais diversas formas, me contando que minha escassez é uma farsa, minha avareza é desnecessária, e o essencial existe abundantemente para todos. Agora mesmo a deusa mãe está comigo no colo diante do espelho com seios desnudos e fartos de um amor sem proporções. Ela me segura enquanto escrevo e sorri, e seus lábios nunca se cansam, e seus braços também não, e sempre que acordo dos meus surtos de cegueira é onde estou: no colo deste ser de interminável doação. Nunca me deixou e nunca me deixa, nem mesmo quando escolho fechar os olhos e passar algumas horas de dor e prazer penteando as minhas caríssimas misérias. 
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Comentários

  1. Arrepiei de verdade! Mágica é a fala... E A SUA ESCRITA!!! Que me instiga a pensar com vagar! Só depois de sentir... sentir... sentir... GOSTEI SEM PENSAR! AMEI SUA EXISTÊNCIA... DE NOVO!!!

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    Respostas
    1. Eita! Que bom amiga! Gostar sem pensar é o maior gostar!

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  2. Uau! Poesia pura....parabéns!👏👏

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