A flor e o Susto

Descobri recentemente que no último meio século tenho estado pouco aqui. Tenho dúvidas até de saber onde é aqui. Não sou nem capaz de precisar quando foi que me mudei para um mundo virtual todinho feito de crenças que me são caríssimas. Creio, por exemplo, que tive uma infância difícil e afetivamente instável e sou fruto disso. Estou sempre recorrendo a uma cena de abandono da criança do passado para dar uma assinatura harmônica às minhas angústias... que combine com o modelo sofisticado de crenças que me constroem enquanto ser. Tive uma amiga cujos pais se suicidaram, um após o outro com alguns anos de diferença quando ela era criança. E virou uma adulta feliz, a louca. No conjunto de crenças que a construíam pais suicidas foram transformados em sangue sobre azulejo e ela simplesmente lavou. Na minha cenografia teriam se tornado um altar onde uma heroína interna rezaria todos os dias. Arrumei, entre outras agruras, uma síndrome do pânico, logo na adolescência. Fiz daquele caos desestruturante e doloroso uma história de superação e tanto e pendurei na parede da minha sala interior. O médico que me tratou ainda na juventude me falou de um outro paciente seu, um velho fazendeiro, que ficou satisfeito simplesmente em saber o diagnóstico. Voltou para sua fazenda e misteriosamente nunca mais teve crise de pânico. O universo dele só precisava do nome da doença. O meu precisava de um mártir: mandei fazer. Outro dia, um bando de filósofos arrombou o portão da minha fortaleza e me contou a novidade simplória e devastadora: tudo criação sua. Absurdo. Total absurdo. Mandei Platão se arrancar com os egípcios do meu quintal. E leve os mestres Zen tibetanos junto! Bando de doidos, berrei. As coisas me acontecem. Elas vem do nada e me acontecem. Berrei mais alto! Mas a pulga do conhecimento sentou-se atrás da minha orelha e deitou ferroadas. Comecei a exercitar uma estranha observação da realidade. E de repente, num susto, vi a árvore e sua flor na frente da minha janela e entendi que eu estava ali e ali havia paz de existir. A dor estava no pensar. A dor estava no mundo criado e obsessivamente projetado pela mente. Desde então, sempre que me surpreendo afogando nas minhas crenças de fracasso, sucesso, abandono, reconhecimento, dívida, segurança, prisão, futuro... olho para a flor na árvore. Existindo simplesmente. Plena e inatingível. Como um boi, um peixe que olha. A flor na árvore é tudo que há. Intraduzível. E a história que crio para mim todos os dias não está errada, pode seguir como exercício desta criatura miseravelmente evoluída que se pensa, mas pode sim pesar menos. Bem menos. 
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Para Vivica.
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