Querida Deus

Querida Deus,
eu sempre achei que você era menina, talvez por conta do desenho de algumas asas de borboleta que vejo por ai. Ou meio menina, talvez. Então escrevo-lhe, de menina pra menina, para solicitar uma resposta. Tinha treze anos quando fui introduzida no baile dos hormônios. Um mal estar no ônibus na volta da escola, uma calcinha tingida de vermelho, tudo bem: fiquei orgulhosa. Achei bonita esta ideia de marcar minha entrada na maturidade com uma cor tão forte. Meu pai correu até uma farmácia e buscou um absorvente. A notícia correu entre meus irmãos. E eu saí do banheiro maior do que havia entrado. Não imaginava que tinha sido transferida do meu plácido lago hormonal para longos anos de boia-cross. Comecei a não entender muito bem a parte da cólica, a dor de todos os meses, achei aquela irritação e aquele peso antes do sangramento, desnecessários. Meus coleguinhas machos saltitando sorridentes pela estrada e eu amuadinha num canto, chorando por qualquer tatu-bola esmagado, querendo meu escuro. Pensei que você queria me fazer mais forte, afinal, algum dia talvez,  eu iria carregar um filhote pesado na barriga e colocá-lo para fora por aquele minúsculo buraquinho por onde eu fazia xixi. E então teria que criar a criatura, tão inacabada, tão dependente, tão necessitada da minha imensa paciência, compaixão e resiliência. Sim, querida Deus, era só um treinamento aquela montanha russa hormonal dos infernos. Mais de vinte anos treinando todos os meses até nascer um filhote. Acho que podia ter sido menos, mas valeu, afinal não me apavorei nem mesmo quando coloquei três seres humanos no mundo ao mesmo tempo. Até conseguia encarar as corredeiras mensais enquanto cuidava deles sem enfiar os dentes em nenhum... mesmo naqueles momentos de reversão hormonal súbita que você criou.  Sentia os caninos crescendo dentro da boca e corria para a terapia, para a meditação, para a yoga, e sobrevivíamos mais 28 dias. Comecei então a virar uma senhora. Não achei ruim. Tinha conquistado dentro uma paz, uma maturidade, um amor próprio de quem encarou o rio. Somadas as experiências, eu era uma mulher que eu amava. Fui dormir mais uma noite comum. Achando que tinha compreendido o sentido da prova de atletismo que você criou para suas amigas meninas. E acordei no breu atacada por uma onda inexplicável de calor. Não estava mais na corredeira, tinha descido numa terra estranha onde de hora em hora é preciso arrancar inutilmente todas as roupas, até no meio da madrugada, para aliviar uma não solicitada caldeira interna.  E o alívio não vem. Ao lado, na cama, meu marido ressonava madrugada adentro. Então, querida Deus, decidi escrever-lhe e atrever-me a perguntar-lhe: no céu das meninas as nuvens serão de algodão egípcio?
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