E o pior é que não vivo sem ele
Eu nunca enchi o saco dele. Nem do nome esdrúxulo dele, eu
nunca falei. Pterigoideo (Fala-se Pterigoidêo!). Ah, vamos ser sinceros, isso é
nome?! Mas eu sempre respeitei, nunca falei nada. Agora, depois de quase
cinquenta anos de relação, resolveu que está estressado e quer um tempo. No começo achei que era chantagem emocional e
resolvi ignorar, ir levando... mas Pterigoideo é foda: começou a me aporrinhar
todo dia. Primeiro sutilmente, uma cutucadinha aqui, outra ali... E eu firme,
ignorando. Faz um mês que declarou guerra. Enche o raio do saco várias vezes ao
dia e até de noite. Estou lá morta de cansaço, depois de um dia de cão,
tentando me recompor nos braço de Morfeu e o sem noção me acorda. Todo
irritadinho, todo sensível, e vem me jogar na cara que estou doida, que estou
estressada, que estou abusando dele. Ah, vá! Tento enfiar a cara no travesseiro
e aperto bem os olhos pra ver se ele se toca que madrugada não é hora pra
discutir relação. Não adianta. Pterigoideo não para enquanto não me arranca
completamente do sono. Retruco que estou sobrecarregada, que tenho trigêmeos,
que tenho três cachorros, dois gatos e uma tartaruga, que a casa é grande e eu
ainda preciso ganhar dinheiro e nunca sobra tempo pra escrever minhas peças de
teatro, que estou frustrada, que estou revoltada com o universo, com a política
e com a falta de água em São Paulo, que ele tenha pena de mim em vez de ficar
me acusando e ameaçando me boicotar e que ele pelamordedeus relaxe pois são
quatro horas da manhã e eu preciso acordar às seis pra levar as crianças à
escola. Não relaxa, não quer saber da minha vítima, dos meus dramas, enfia mais
forte as esporas no meu lombo. Grifa a mensagem em vermelho: chegou no limite, não
vai ceder mais. Não pode ceder mais. Você faz tudo na porrada e eu estou cansado de fazer força pra estar com você! – Me joga violento na cara. Está bem, confesso, está certo: abusei. Estiquei
demais o elástico. Pterigoideo está de saco cheio da minha incapacidade de
cuidar de nós, da nossa relação: ficar um tempo apenas descansando
junto dele, de boca aberta olhando as nuvenzinhas correndo no céu. E o pior é que eu não vivo sem ele. Sem este pequeno bosta do nome feio, sou capaz até de morrer de fome! Larga de tragédia e de me sobrecarregar com sua infelicidade crônica, volta pra
terapia! – Conclui bombástico. Enfio a cara no travesseiro e choramingo. Não
mais para fazê-lo ter pena, mas porque é duro admitir que Pterigoideo está
coberto de razão. Preciso parar de tratá-lo como um objeto, parar de usá-lo
como se eu pudesse jogá-lo fora, parar de despejar nele todo o meu não dou
conta. Peço desculpas a Pterigoideo pela minha falta de limites e coloco sobre
ele a mão quente num carinho. Sim, eu o abandonei em nome da
minha infinita ambição de ser e fazer. Eu o usei como se fosse uma camiseta,
como se estivesse morto. E eu o pressionei durante anos até que ele não
suportou mais. Peço perdão novamente e vou atrás de recuperar nossa relação,
nossa conexão, nossa paz. Creio que ele me perdoará e ficará bem. Queria poder
beijá-lo, mas não posso. Então, levo bem perto dele o canto da minha boca numa
expressão que chamamos de sorriso. Sossega, amado, você foi ouvido até
porque meu sistema auditivo é logo ai do lado. Ele arrefece um pouco suas
fibras estriadas esqueléticas, mas reitera: se vira nega que eu não serei mais
condescendente como aquele otário do coração.
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Uma plaquinha miorelaxante, dessas que os dentistas fazem, não pode lhe ajudar???
ResponderExcluirAi, Nanna, só você pra me fazer rir das nossas desgraças. Essa crueza assim escancarada toca as minhas vísceras. Grata pelos seus textos que são tão nossos. Beijo com amor.
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