Cansei de Safári
E chega o momento em que escolhemos fazer o concurso público. Na frente: o vazio, o abismo. Ao lado: os filhos. E abrimos espaço para considerações antes dolorosas. Estamos menos heroicos e menos dispostos, e a dor foi mudando de endereço. A fama e a riqueza não compareceram nesta encarnação e começamos a duvidar que aquele prêmio da loteria possa mesmo cair no nosso colo. E nós, que nos pretendíamos um quadro de Gaudi, passamos a considerar as delícias de ser um porta-retrato, quem sabe um grampeador. A estabilidade vai crescendo em nosso sonho como trepadeira no verão. Uma sala com paredes descascadas, pedacinho nada glamouroso de concreto, mas onde se possa simplesmente permanecer fazendo algo deliciosamente simples e burocrático. Juntar papéis, preencher fichas, analisar documentos, digitar dados, fazer cópias numa monótona máquina de Xerox que canta sua musiquinha repetitiva. Porque chega o momento em que este negócio de matar um leão por dia fica chato e você descobre que a vida não é um safári ou, pelo menos, que não é esta a sua proposta, mesmo que você atire bem. E, na verdade, você só quer fazer algo direito e não melhor do que todo mundo nem a melhor coisa do mundo para se sentir seguro e necessário. E até a palavra criativo começa a te irritar. E você pensa que, escondido atrás de uma mesinha no serviço público, você seria feliz e seu horário de trabalho não seria uma incógnita, nem os recursos da sua conta bancária e até haveria mais tempo para escrever poemas, contos e peças de teatro. Chega o momento em que a antiquada faixa de funcionário público, manchada de preconceitos, começa a combinar direitinho com suas roupas descoladas e o aplauso seduz menos que o sossego. E o verbo acomodar não assusta mais. Chega o tempo que você nunca imaginou que chegaria porque esta vida é surpreendente. E você se socorre na eternidade de um funcionário público:
"Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!"
Drummond
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Drummond
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Amiga, vivemos momentos muito semelhantes, pena que nascemos aqui neste Brasuca, em outro lugar seríamos muito mais valorizadas. E aquele nosso café?
ResponderExcluirLu, manda seu celular que combinamos este café pra já. Bjooo
Excluirhahahahaha! nunca tinha pensado nisso para me resguardar! eles foram funcionários públicos! todos eles, os poetas do passado! não existia isso de "profissão: poeta!" eram médicos, fiscais, desembargadores, diplomatas, até os jornalistas tinham outra profissão, ou melhor dizendo, tinham uma profissão, pq jornalismo não era profissão! hahhaha! talvez por isso tenham sido geniais! por, como vc disse, terem tido tempo para escreverem seus poemas e afins. tempo e descomprometimento com prazos e cachês...
ResponderExcluirPois é, Luisa. Me caiu a ficha agora. Quero ser fiscal de qualquer coisa, fiscal da natureza seria ótimo.
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