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Quando comecei a roubar

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Eu resolvi roubar também. É. Vou roubar os outros. Vou aderir à roubalheira institucionalizada, juntar-me aos maus e engrossar a farra do cada um por si. Chega desta bobagem de querer fazer arte aos trancos e barrancos, implorando esmolas do Estado ou ajoelhando para o marketing dos patrocinadores. Melhor ser criminosa que ser artista nesta triste república verde amarela. Chega. Encheu. Vou chamar umas amigas que também andam bem de saco cheio da falta de tudo reincidente no cotidiano tupiniquim e vamos montar uma gangue. De dia, vamos levando esta vidinha besta de ler jornal e descobrir que fomos vítimas mais uma vez dos políticos, dos líderes da nação e dos chefes das quadrilhas de todos os níveis hierárquicos, mas de noite... Ah! de noite vamos à forra. Vamos tomar o nosso na marra, enfiar uma arma na cara dos que ainda vagam por aí indefesos e arrancar tudo que der. Vamos assumir nosso parentesco com aquele ladrão português que foi abandonado na Terra Brasílis pelas primeiras ca...

Como um general, como um monge

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Kazuo Ohno - Butô Há que se ter uma disciplina assustadora no amor.  Nada mais fácil que se distrair dele. Há tempos me converti de novo na autora da escrita abandonada. Justificavelmente, afinal de contas, eu tenho trigêmeos, eu tenho cachorros, eu tenho gatos, eu tenho casa grande, eu tenho que ganhar dinheiro, eu tenho que tocar projetos artísticos, eu tenho coisas demais que comem tempo. O amado e vital ofício de escrever que se encaixe no rabo da fila das prioridades. Não posso parar uma hora inteira para escrever, é um desperdício inadmissível de minutos na vida de demandas empilhadas que levo. E está tudo bem se não escrevo. O leite não derrama se não escrevo, a criança não perde o ano na escola se não escrevo, não cortam a minha luz se não escrevo. Então não escrevo. É só algo que amo. Amo tanta gente pra quem não dou sequer um telefonema por meses a fio. Amo ficar deitada no quintal no sol de inverno e o inverno já vai acabar e minha pele nem sabe mais o que é sol. Es...

2.0 Wireless

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Fab Lab House em Madrid O rapaz sentado à minha frente, um respiro, uma brisa de futuro bom. Uma geração menos fominha, falando em coletivos, em softwares livres, em dividir, em destrancar. Como se o pêndulo chegasse ao extremo do egoísmo humano e começasse sua viagem de volta. Sem o afetamento dos candidatos a gênio do meu tempo, gente competitiva demais, achando que o mundo era corrida de cavalo. Sem a necessidade de medalha, de prêmio pra colocar no currículo, sem pós, sem MBA, sem nem curso superior ainda, mas já senhor de um conhecimento útil. Desinteressado do ensino formal, nadando em mainframes e saindo de lá com o caminho do fazer. Achando fácil fazer. Falando em resgatar o fácil no cotidiano, desembolar tantos fios que inventamos para nos mantermos de pé. Ser humano geração 2.0 wireless. O rapaz tomando seu café com sorriso e avisando: vai mudar o mundo. E vai mesmo porque é leve e fluido como uma chuva de pixels num céu de LCD. Isto: ele é de outro universo onde eu não ...

Pobre menina pobre

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Foto Thiago Kunz Finalmente descobri por que não sou rica. Minha mente não sabe ser rica. Foi educada para a pobreza. Produz pobreza o dia inteiro. Midas às avessas, transmuta todo ouro que toca em escassez. Aferra-se a vinténs. Tem orgasmos diante de tabuletas de descontos. Não sabe ter. Mesmo tendo, segue na miséria. Escassez interna, atávica, desprazer em gastar, obstinação pelo barato. Moto-contínuo que me mantém ligada à minha infância, a meus pais.  À criança que guarda no bolso do short a foto vincada e rota da geladeira vazia. Criança do short sujo, da camiseta rasgada, dos pés no chão. É ela quem dirige o carro caro que tenho. Dirige, mas não sente. Anestesiada pela culpa. Exultante por fazer sacrifícios. Gata borralheira travestida de princesa, incomodada com coroas e sapatinhos de cristal. Não pode ser rica. Não posso. Iria trair meu passado, meus antepassados. Então me afasto das possibilidades de ganhar grana, penso mil vezes antes de cobrar pelo meu trabalho o qu...

Estupidez

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Em junho deste ano meus ouvidos adoeceram. Fartos da balbúrdia do mundo que alimento. Não lhes basta o silêncio solitário da meditação, querem o meu silêncio no tiroteio verbal cotidiano. O silêncio. Necessário. Urgente. Produzi-lo. Falar menos. E menos. Até nada. Desviciar-me em falar. Desviciar-me em comandos, em comentários. Receber as provocações do mundo e calar. Não reagir, não rebater, não repicar. Calar. Produzir silêncio para o conforto do mundo. Abrir mão do status de máquina afiada de pensar e cuspir palavras. Deixar de dar feedback, de dar fé, de depor. Calar meus achismos e, se possível, nem chegar a achar nada sobre esta sua escolha, esta sua atitude, este seu novo amor. Só balançar a cabeça de leve e aceitar. Muda. Parar de tentar remediar o mundo com minha fala. Parar de terapeutizar o mundo. Aquietar nas coisas como são, na beleza do que é. Dar tempo aos olhos de encontrar a beleza que jaz antes que o pensamento borre tudo com suas expectativas e a fala contamine a ...

Dez trilhões de eu

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Conversa com tuas células.  Para tudo. Fecha os olhos. Fala com elas. Teu corpo são muitos corpos, muitas pequenas vidas associadas.  Agora mesmo, uma infinidade de processos estão em marcha movidos por uma inteligência maior que a da tua mente. Teu corpo, tua testemunha do tempo, teu mapa da caminhada, tua memória emocional espalhada da unha do pé à ponta do fio mais comprido do cabelo. Conversa com ele. Para tudo. Fecha os olhos. Escuta tua corrente sanguínea.  Sente o ar massageando internamente teus pulmões. Existe carícia mais deliciosa? Perceba: recebes carinhos oxigenados todo o tempo e jogas fora. Encosta uma mão na outra. Simples assim. Sente teu próprio calor: é isto que tu és, um ser quente, um ser que aquece. No calor das tuas mãos, o segredo do futuro dos homens. Que arma conheces mais poderosa que um abraço do corpo? Onde um ser humano se coloca mais inteiro, mais indefeso, senão na concha tépida dos teus braços?  Desliza tuas mãos pelos teus braços ...

O coxo dança

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Garrincha Na integridade do meu coxo, vou buscando o meu existo. Na verdade do meu manco, distribuo fartos esbarrões em gente querida. Sinto a culpa avançar sobre as pernas em contrações musculares, como sempre, na intenção de devolvê-las retas à correta e aprovável colagem de cacos de mim. Barro com o braço. Defendo meu coxo e seu incômodo. Peço desculpas inúteis: não mudam o que sou. Busco entender o novo e estranho caminhar: meu coxo, meu reto.  Avanço sobre o temido, o evitado, o que não cabe, o que me revela. E vejo minas explodirem levando os que iam ao meu lado. Não arrefeço o passo, não me desvio. Não quero mais fazer ciranda com meus mortos. A propulsão da alma desconhecida me empurrando para frente como um tanque cruzando a floresta. Sem conversa, sem interpretações, sem pena das plantas no caminho. Levando no peito os cipós do "não" que não entendo. Determinada a atravessar. Ciente dos buracos com estacas que eu mesma cavei pelo terreno e cobri com folhas. E n...