Como se fosse um grito
Não gosto de falar dela. Mas não há truque, maquiagem ou
photoshop capaz de disfarçar a cicatriz que divide meu corpo. Em cada sorriso
que tento, sinto o corte no meio dos lábios a repuxar. Um rasgo centralizado
nascendo na testa, cruzando o abdome, mergulhando no púbis e subindo pelas
costas até o topo do crânio. Obra de uma tentativa desesperada da alma de
deixar o corpo num dia em que este foi inundado pela dor. Não gosto de falar
dela e, em geral, guio os olhos dos amigos para o humor irônico que me socorre
nas porradas da existência. Ajeito o cabelo sobre a cicatriz, visto blusa colorida
de gola alta e vou reduzindo os espaços que ela habita nos olhos dos que me
amam. Por que não gosto de falar dela. Mas chega a hora do banho, quando estou
só na caixa de azulejos, eu e meu corpo despido que às vezes vaza num pedaço do
espelho sobre a pia... e então ela me engole como uma estrada sem fim ou começo
desenhada na pele. Caminho onde vagará para sempre uma mãe que anda para não
doer. Tentando não ser alcançada pela memória da filha morta que palavra alguma
pode mudar. Mudada. Muda. Partida. Chega. Não irei mais falar dela. Já basta
senti-la pulsando a cada pegada desta criatura desparida. Pulsando como se fosse um grito.
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