Abismo 7

Não perdi ninguém próximo na pandemia. Mas tenho andado angustiada desde que sumiu, dali da esquina, José o pipoqueiro. Olho da janela em busca do homem, remoendo a culpa de tê-lo matado seis meses atrás. Eliminei o pipoqueiro da minha rede de relacionamentos após a milésima vez que ele defendeu o presidente. Tentei ser tolerante, mas tudo tem limite. José cruzou meu limite com sua disponibilidade de morrer para ficar vivo. O presidente tem razão, mastigou atrás daquela máscara de pano fina e inútil, aquele deboche de máscara. Ele tem razão: pobre não pode parar como a senhora. Morrer de fome é mais certo que morrer de gripe. O vírus, pelo menos, poupa muita gente. E riu uma risada nervosa, o pipoqueiro. Eu ali comprando pipoca pra ajudar, tive raiva grande do José e sua escassez medonha. Vestindo o abandono todo dia de manhã e escorregando pra rua, pra chuva de canivetes. Acostumado a dividir a calçada com o vírus mortal, a bala perdida. Tão privado de humanidade que deu pra se s...