Sai Safo, Entro Eu
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Sappho - C. Mengin |
Senhorita Safo está um porre. Sim, ela está chata e obcecada
pelas sombras humanas. Tentou até escrever sobre algo bacana, legal, uma
pessoa generosa, uma prova de amor, uma ONG que alegra o final de ano dos
velhinhos do asilo, só para variar. Não deu conta. Repete compulsiva que o mundo está uma merda, o ser humano é foda e quer ir embora do país. Mergulhada
em sua bílis, feito um crocodilo, só com os olhos maus de fora. Diz que vai criar
ovelha no Uruguai. Diz que não vai escrever mais, que escrever é uma utopia inútil. Eu sei o que é. Final de ano. Sempre que ela
se depara com a primeira árvore vestida de luzinhas piscantes, começa seu
inferno. Final de ano ela se deprime. Batata. Então decidi conceder-lhe um indulto
de Natal. Abri a porta da masmorra e a deixei entrar. Nem olhou pra
trás. Disse a ela que vou publicar um conto meu enquanto ela não volta, vou
publicar em partes, pra ir durando, enquanto ela não volta. Não sei se ouviu.
Desapareceu no escuro úmido da masmorra. Imagino que ela volte sim, em Janeiro, e
não vá pro Uruguai, nem deixe de escrever. Mas não sei. O que posso fazer, enquanto
isso, mesmo sabendo que não tenho a verve visceral da dita, é ir publicando meu
conto aos pedaços. Tive medo de me acharem muito rasa no contraste com ela, então escolhi a
história de um estupro. Mas é um estupro legal. Podem ler em paz.
Nanna de Castro.
O ESTUPRO – PARTE 1
Dia comum. Ela empurrou o portão de ferro carcomido e
lançou-se na rua. O sol apenas ameaçava surgir, mas já pincelava do seu
esconderijo cores quentes sobre o topo dos prédios. O céu seria imoralmente
azul naquele dia, mas Maria Cecília não iria ver. Na verdade, dentro de cinco minutos ela
estaria absolutamente inconsciente.
A rua vazia guardava o sono dos moradores. Maria Cecília
abaixou-se para ver seu rosto no espelho retrovisor de um automóvel. Constatou
que a beleza também acorda cedo, pelo menos a dela. Os cabelos longos e
negros vieram com o vento tapar seu rosto, talvez para evitar que narciso
sugasse Cecília para dentro do retrovisor do fusca azul. Um movimento displicente com a cabeça e lá se
foi a cabeleira devolvida ao seu lugar. Cecília seguiu sozinha pela rua.
Quando dobrou a esquina, dois homens lançaram-se sobre ela.
O primeiro imobilizou lhe os braços, o segundo tapou-lhe o rosto com um pano
encharcado em éter. Ela debateu-se como pôde, mas os braços fortes extinguiram
toda tentativa de movimento. Tentou gritar e assim apressou a inspiração do
éter que em segundos a deixou desacordada. Os sons do mundo foram ficando
distantes, os músculos lacearam. Os homens não falaram nada. Com a agilidade
dos transportadores de mudanças, colocaram Cecília no banco de trás de um
carro. Não levaram dois minutos para imobilizá-la e desaparecer dali. A rua
continuou deserta, silenciosa, e demorou um bocado até que outro passante
cruzasse por aquela calçada.
Maria Cecília dormia um sono profundo, cheio de pesadelos.
Lutava desesperadamente para voltar à consciência, mas quando chegava às
pálpebras, elas estavam trancadas pelo peso de toneladas de chumbo. Exausta,
deixava-se escorregar de novo para o abismo do sonho onde rostos em desfile
falavam palavras desconexas à sua frente.
O rosto do pai flutuava no nada gritando seu ódio como no
dia em que Cecília saiu de casa. Ia viver com um ator de teatro vinte anos mais
velho do que ela. Nos olhos do pai, Cecília via o ciúme cru, o ciúme de macho,
que ele jamais conseguiu disfarçar.
Estavam tirando suas roupas. Cecília sentiu os botões de sua
camisa sendo abertos, o fecho da calça deslizando sobre a barriga. As vozes
desconhecidas ressoavam mais próximas: - É bonita... bonita... bonita...
Outro rostos... O ator de teatro que um dia arrancou-a
daquela cidade do interior. Ele, com sua aura luminosa de artista, sorria sob o
cone de luz esfumaçado. O que teria acontecido depois do dia em que
ela o deixou? Um arlequim gargalhou na ilusão de Maria Cecília.
Da superfície distante do seu corpo veio uma pequena
sensação de frio. Lentamente foi
sentindo cada parte do corpo nu esparramado sobre uma superfície sedosa que
muito lembrava os lençóis de cetim da casa de seu amante. Os lençóis que a
esposa trocava carinhosamente antes de viajar com os filhos e deixava tão
perfumados para Cecília fazer sua festa. Tentou lembrar-se do rosto do amante,
do seu nome, mas a imagem escafedeu-se na mente atordoada. Quem apareceu
foi um homem alto, de ombros largos e cabelos finos caídos no rosto que se
encontravam com uma barba deixada por fazer escondendo-lhe totalmente sob pelos.
Foi desabotoando a camisa enquanto olhava fixo para ela sem palavra. Os pelos
da barba seguiam fartos para o peito e eram revelados a cada botão que as mãos
dele mergulhavam lentamente nas cavas. Os olhos famintos faiscavam sob os
cabelos. A estrada dourada de pelos seguia além do tórax por uma trilha
abdominal estreita e acabava no botão da calça que neste momento era tirado do
caminho. O homem era uma imagem fugidia na neblina. E por mais que Cecília
olhasse, estranhamente, ela não o via.
(Continua)
Ah, fiquei curiosa... Volta logo! Adoro contos :)
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