História emprestada - Nosso amado porão

Eu gosto do porão. O meu, o dos outros. Eu sinto um prazer indescritível quando desço as escadas e o vento vem gelado lá de baixo tocando seus dedos nas minhas pernas. Vou submergindo devagar e deixando na superfície a enfadonha realidade e seus limites. Bruxa antiga, não funciono bem sob os raios solares. O cotidiano da maioria só me comove quando reflete os gemidos e as cores rubras do porão. Desço as escadas todos os dias, religiosamente. Vou encontrar meus fantasmas, reconhecê-los, dançar com eles muitas valsas, segurando seus cotos sem mão. Volto para a superfície abastecida dos horrores do meu passado. Meus fantasmas os entregam a mim como pedras preciosas sabendo que logo voltarei para buscar mais. Dores de muitas cores, mágoas que brilham, violências fluorescentes, eu as tenho. E as procuro nos outros, as recebo, as acolho, entendo o que elas dizem, traduzo muitas vezes, para os perplexos, sua fala. Conheço todas as entradas e saídas do porão e ajudo os Minotauros...