Torturante Dezembro

Torturante dezembro de qualquer ano: mês de rituais festivos obrigatórios, compromissos, retrospectivas, expectativas, mês do fim das coisas e da minha chegada ao mundo. Família reunida, uva passa, peru com farofa, presentes... E eu emborcada no meu estranhamento. Sobrevivo ao Natal sem grandes performances: comporto-me bem à mesa falando futilidades, bebo vinho demais, como em excesso para me distrair numa overdose dos sentidos. Tento dormir cedo. Frustro minha filha que quer receber o presente à meia noite. Tenho a meu favor o fato de ter montado a árvore com seus enfeites e luzinhas, também comprei presentes para os mais amados e encomendei a ceia. Minha filha me perdoa e fujo para as profundezas do lençol. Venço a primeira etapa e sigo para o segundo round: meu aniversário. Que criatura abominável se esconderia no próprio aniversário? Sim, estarei na estrada como quase sempre ou em algum lugar simplesmente longe. Aquele climão de fim e eu com este encargo de renascer. Dou meia volta e quero retornar para a escuridão de onde brotei. Todo fim de ano me transforma em caçadora de buracos. Familiares muito, mas muito próximos, às vezes conseguem cantar um “Parabéns pra você” diante de um bolo improvisado num restaurante. Encarno minha atriz alérgica a refletores e sorrio amarelo clarinho. Não quero decepcionar quem vem com o coração nas mãos. Respondo a todas as mensagens que pipocam no celular, responsável absoluta por aqueles que cativei nesta dimensão. Mas estou fora de mim, acuada pelo mês de dezembro. Novamente corro cedo para o quarto na ânsia de passar logo para a próxima idade que nunca sei qual é. Pronto, só falta o Ano Novo. E lá vem ele com seus rituais que eu deveria experimentar um dia: roupa branca, lingerie amarela, pular ondinhas, enrolar sementes de romã na nota de um dólar... Desta vez não consigo ter a cara de pau de dormir antes da meia noite.  Estaria abusando da minha licença de ser excêntrica, neurótica, sistemática e chata dos infernos. Minha filha não merece. Arrasto-me junto com os ponteiros do relógio à espera da contagem regressiva coroada de fogos de artifício. Busco de novo me distrair comendo e bebendo como um ogro. No ar aquela excitação louca produzida pela promessa de que tudo irá mudar no próximo ano que é daqui a pouco. Seremos mais ricos, mais humanos, mais amorosos, mais pacíficos e mais magros... Sim, serei magra no ano que vem! proclamo cheia de cinismo brandindo a taça de espumante e o garfo espetado no pernil. Enfim a televisão me avisa que faltam só dez segundos. Dez segundos para eu deixar de ser este monstro depressivo caminhando no contra fluxo das morfinas. Dez segundos pra eu parar de encher o saco com minha misantropia. Dez segundos para eu ganhar de presente um janeiro bem normal, bem comunzinho, de qualquer ano. 
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Comentários

  1. Texto exelente.Vou compartilhar.

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    1. Obrigada Eliana. Sempre é bom ver um texto ganhar asas.

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    2. Lendo agora final de 2021, depois de um ano "maravilhoso" e a espera de outro "melhor ainda". Tomara que não seja... Que texto atual!!! Adorei!!!

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  2. Que texto atual e verdadeiro!!! Depois de um "feliz 2021", agora, à espera de um 2022 "perfeito" (Tomara que não seja) ...
    Ah, feliz ano novo!

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    1. KKKKK. Perfeito seria chato. Um ano novo positivamente surpreendente pra você. Beijão

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