Meia Luz


Neste momento de meia luz, meia clareza, meia vontade de prosseguir, embalo meu sonho no colo feito criança que acordou na madrugada de um pesadelo muito vívido. Meu sonho olha com as pupilas dilatadas nos meus olhos pedindo uma palavra de conforto. Desvio olhar e balanço o corpo resignada. Lá fora o ódio pulando de boca em boca numa corrente que resseca almas e disponibiliza de cada um o seu pior. Meu sonho, trêmulo em meus braços, nada entende. Quando foi que minha felicidade se atravessou no caminho da sua? Quando foi que, para você ser família, eu não pude mais ser livre? Quando foi que a minha arte, feita na peleja constante da falta de tudo, ameaçou a economia do seu país? Quando foi que o meu amor por alguém do mesmo sexo te impediu de amar quem quer que fosse com o amor ao próximo que seu Deus te pediu? Nesse momento, em que a chama da minha vela fraqueja exposta à ventania e meu sonho sente frio, eu te pergunto minha irmã, meu tio, meu vizinho, minha amiga, transeunte que desconheço... quando foi que não pudemos mais andar lado a lado em caminhos separados? Onde a minha existência feliz com meus amigos te roubou algo? Onde o meu prazer, a minha cor, o meu sexo te fizeram sentir raiva? Aperto meu sonho contra o peito. Vou protegê-lo, aquecê-lo como puder na noite longa que se anuncia. Vou juntar em torno dele amigas, irmãs, tios, vizinhos bons num abraço de titânio, numa redoma amorosa intranspassável. Sim, estou olhando nos olhos dele agora e jurando: ninguém irá tocá-lo. Que venha a temida noite e seu escuro, que venha a onda de ódio que não entendo e se arrebente contra minhas costas. Cambaleando, seguirei olhando nos olhos do meu sonho, segurando suas mãos. Que o mal nos arraste em sua fúria, enquanto estivermos de mãos e olhos dados será só uma viagem.  E, se for preciso, morreremos abraçados,  como a grama no inverno. E esperaremos, no coração da Terra, que o sol da evolução humana venha nos resgatar. 
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Para meus "irmãos de luz" Eloisa Elena e Morris Picciotto.
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