Postagens

Mostrando postagens de maio, 2016

Os Estupros

Imagem
Sapho - Charles August Mengin Há muitas formas de tornar-te mansa e tornar-te distraída das tuas valiosas entranhas. Há muitas formas invisíveis de ocupar-te com as vontades do outro e alienar-te do prazer que deverias estar buscando agora, já, neste momento. Uma delas é fazer-te objeto e não sujeito. Cedo, outra mulher te repassa o fardo: tua existência só valerá quando servires a outro. Chamam isto de formas doces como casamento e maternidade. E tu, por mais que estudes e pelejes e trabalhes e cintiles, ficas crente de que serás menor sem um casamento e um filho. Deves, então, desde cedo, ocupar-te da obrigação de ser desejável e aprazível para cumprir tua meta. Este, seu mantra perpétuo, perversamente colado ao teu feminino: ser desejada, dar prazer. E vais gastar grande parte da tua vida nisto: alisando cabelos, arrancando pelos, esticando peles, passando fome, passando cremes, apertando cintas, correndo distâncias mortas, entrando nas facas. Olhando para fora numa luta infini

Sem pular da ponte

Imagem
K. Polak Hoje deixei o Facebook e fui até a cozinha conversar com Nádia sobre política. Minha parceira total no dia a dia, que acho estranho chamar de empregada, substantivo genérico que não define de fato a especialidade e o valor do que ela faz. Nádia que passa a maior parte da vida ao meu lado, misturada de forma tão silenciosa à intimidade da minha família. Nádia que é profissional dedicada e admirável e gosta do que faz. Nádia que vai nos receber em breve num churrasco em sua casa. Nádia que mora longe. E vem de uma realidade ainda distante demais. Hoje deixei as disputas conceituais do Facebook, tão penosas nos tempos de penumbra moral que vivemos, e, enquanto nossos trabalhos esperavam, conversamos.  Ela me contou das precariedades do SUS, do qual ela e os seus dependem, eu disse que o novo Ministro da Saúde falou em cortes, ela não entendeu “cortar o quê”. Falou que o Lula foi muito bom para o nordeste e mudou a vida de muita gente que ela conhece lá, mas a roubalheira n

Quem nunca?

Imagem
Do nada, ela foi embora. A vizinhança, os amigos, ficaram chocados. Largou tudo: filhos, marido, cachorros, gatos, uma casa grande, uma vida boa. Levou umas roupinhas surradas, o notebook, uns livros, dois pares de sapato.  Na rodoviária, escolheu aleatoriamente um guichê e comprou passagem para o nada. Destino? Esquecer-se de si mesma. Dissolver-se entre rostos desconhecidos. Foi pegando um ônibus depois do outro até se afundar irrecuperavelmente no interior de si mesma: outro planeta, onde tornou-se alienígena. Uma senhora estranha sem passado, sem ninguém, sem projeto de vida. Alugou um quarto simples, numa pousada simples, sem TV ou internet. Então, sentou-se na cama e sentiu o abraço aveludado do vazio. Podia ser tudo já. Podia amar quantos quisesse. Podia dançar nua a noite na beira do rio. Podia gastar o dia inteiro escrevendo um haikai no chão de terra pra ninguém ler. Podia tomar um porre homérico e beijar a boca de outra mulher e nunca mais revê-la.  Podia gritar e gritar