Como um general, como um monge

Kazuo Ohno - Butô
Há que se ter uma disciplina assustadora no amor.  Nada mais fácil que se distrair dele. Há tempos me converti de novo na autora da escrita abandonada. Justificavelmente, afinal de contas, eu tenho trigêmeos, eu tenho cachorros, eu tenho gatos, eu tenho casa grande, eu tenho que ganhar dinheiro, eu tenho que tocar projetos artísticos, eu tenho coisas demais que comem tempo. O amado e vital ofício de escrever que se encaixe no rabo da fila das prioridades. Não posso parar uma hora inteira para escrever, é um desperdício inadmissível de minutos na vida de demandas empilhadas que levo. E está tudo bem se não escrevo. O leite não derrama se não escrevo, a criança não perde o ano na escola se não escrevo, não cortam a minha luz se não escrevo. Então não escrevo. É só algo que amo. Amo tanta gente pra quem não dou sequer um telefonema por meses a fio. Amo ficar deitada no quintal no sol de inverno e o inverno já vai acabar e minha pele nem sabe mais o que é sol. Está tudo bem, não está? Esta sou eu distraída do amor. Não está. O mundo é feito de uma profusão de anúncios luminosos para nos distraírem do que a gente ama, de quem a gente ama. Porque o amor se liga a coisas simples demais, baratas demais, acessíveis demais para este mundo movido a excessos. Vai que eu estou lá espichada no sol de inverno e deixo de sentir a falta de alguma coisa que preciso comprar urgentemente? Vai que estou escrevendo um texto pra ninguém e me esqueço momentaneamente da dor que me faz correr atrás de tantas compensações? Por isso o mundo é implacável quando me distraio: me arranca do território amado e me lança bem longe, e me cobre de entulhos, e me joga de lá pra cá na já conhecida maratona sem fim do eu contra eu mesmo. E então preciso ser radical comigo como um general, como um monge: Disciplina no amor! Para tudo e escreve! Imediatamente! Qualquer coisa, cinco linhas estúpidas, sobre qualquer assunto inútil, escreve já, agarra-se com unhas e dentes ao seu amor! E o amor está sempre aqui à minha espera. O paraíso real, o verdadeiramente essencial, sempre aqui à minha espera.
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Comentários

  1. Nanna: saudade... Bj Davi

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  2. ai que lindo... vai que eu esqueço da dor que me faz buscar as compensações... vendidas nos supermercados... vai que... ai que lindo!

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