Pior que a dengue

Zé foi a uma manifestação destas de rua, numa sexta ou num domingo, e chegou em casa com uma grave arrogância ideológica. Entrou de cabeça baixa, irritado, e foi se deitar mais cedo. A mãe estranhou: o Zé foi sempre tão divertido. Primeiro sintoma da arrogância ideológica: perda progressiva do humor. Acordou no dia seguinte cheio de olheiras e a mãe descobriu que Zé não havia pregado o olho a noite toda. Ficou com a cara colada na tela do computador comentando postagens no Facebook. Zé não podia mais ficar calado diante de tanta imbecilidade. Ele precisava desesperadamente fazer aqueles idiotas, cretinos e equivocados que ficavam falando coisas estúpidas na rede social, saírem do seu estado de torpor miserável. Segundo sintoma da arrogância ideológica: ódio súbito de quem diz algo contrário. Queimando em sua febre catequizadora, Zé varou a noite xingando desconhecidos e buscando desesperadamente parceiros de fúria. Recorreu também ao Google onde digitou palavras que reforçavam suas teses sobre a podridão que o cercava e recebeu milhares e milhares de links levando a textos que justificavam e ampliavam em muito o seu ódio aos idiotas do lado de lá. Encontrou até um artigo onde muçulmanos e judeus, juntos, concordavam com ele. Terceiro sintoma da arrogância ideológica: não se arriscar a entrar em contato com informação que possa minimamente contradizer uma certeza. Com a cabeça explodindo de verdades e ódio, Zé maquinou solitário alguma solução radical que eliminasse, ou ao menos colocasse sob controle, aquela gentinha que era responsável por sua infelicidade. Qualquer pessoa minimamente evoluída concordaria que o mundo seria muito melhor sem eles. Mas mesmo consumido pela doença, Zé acabou achando exagerado conduzir estes sujeitos e suas famílias a uma câmara de gás. Lavagem cerebral era meio antiquado. Talvez umas porradas, só pra assustar... Qualquer coisa valia, desde que o livrasse de conviver com aquele lixo de gente que ele nunca, antes da doença, havia percebido tão perto de si, tão falante, tão cheia de vontades esdrúxulas e incompreensíveis. Quarto sintoma da arrogância ideológica: perda rápida da capacidade de ponderação e conciliação. Zé cambaleou para dentro da cozinha de manhã, catatônico, e tentou cooptar a mãe para sua ira heroica e salvadora da pátria. Mas a senhora, de cima de seus muitos e calejados anos, e usando sua inequívoca autoridade materna, o arrastou até um pronto socorro onde a arrogância ideológica foi rapidamente diagnosticada.  Durante uma semana, tomou doses cavalares de humildade e choques de tolerância na testa. E só foi liberado do tratamento quando conseguiu sentar-se com um amigo que pensava muito diferente dele e conversar. A certeza da cura veio no momento em que ele, contrariado naquilo que pensava e incapaz de repassar sua convicção, fez uma piada com a ideologia do outro. A piada era uma provocação mordaz, daquelas que fazem pensar a noite no escuro do quarto, mas não era uma porrada estéril. A mãe do Zé suspirou profundo. Todos estavam salvos.
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