Culpa sua

Alguém é culpado. Da minha dor. Um carrasco recebido de presente enrolado em papel celofane com um laço de cetim furta-cor. Meu carrasco particular. O nome dele pode ser João, meu marido, mas pode ser até a ingratidão do mundo, ou esta minha perna mais curta que a outra, minha gordura, meus filhos. Culpado essencial que me concede o orgasmo de exibir, em praça pública, minhas costas rasgadas a chibata. Eu, porém, não sei de prazer. Só sei que sofro. Aponto meu carrasco para os amigos, na terapia, choro, me dilacero. Mas não consigo deixá-lo por quê? o amo. Não o amo. Preciso da dor na qual me viciei. Mas disso, não dou fé. Tenho milhares de razões para sofrer e vou esfregá-las na cara de qualquer fulaninha que venha me apontar a porta aberta da felicidade. Quero seguir dançando doida no palco com meu vestido branco encharcado de sangue, fazendo rastros vermelhos por onde passo. Minha plateia, cheia de culpados e vítimas, me entende, se contorce comigo nas minhas cólicas. Choram junto quando executo meu Grand Finale e me esborracho no chão de olhos vidrados. Não, não é uma farsa, dói de fato e por isso meu espetáculo é único. E é meu. Sou a senhora absoluta da minha tragédia. Nem o carrasco, com sua extrema maldade e egoísmo, consegue ofuscar minha performance de mártir inocente, impotente, vulnerável. Dentro da redoma, sou estrela e dona do espetáculo do meu sofrimento. Coitada! - murmuram os desavisados - e eu solto um gemido mais alto. Abro a mala de mágoas e distribuo culpas a todos os coadjuvantes do meu drama. Alguns guardam, outros espertos largam jogadas no chão, e seguem pisando firme. Há quem tente me acordar para a vida que passa. Sigo hipnotizada por minha própria criação, focada no carrasco, agarrada ao banco, na milionésima volta do circular trem fantasma.
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