Desencarnada


Nem sempre gostei de estar viva. Lembro vagamente de um tempo em que eu queria voltar pra minha estrela feito Pequeno Príncipe mordida por uma cobra. Eu fui uma criança sem vontade de encarnar. No começo, não olhava a humanidade criticamente. Só me incomodava. Quando homens e mulheres me cansavam com suas esquisitices, fugia pro telhado da casa. Só. Acima dos dois andares, me aninhava silenciosa sentindo a presença magnética do céu. Lá embaixo, o boxixo humano me chamando e eu sem entender que droga tinha ido fazer ali. Lembro-me de querer que passasse logo: a vida. Como um cachorro caído da mudança, um alienígena cuspido da nave espacial e deixado pra trás. Às vezes, desconectava da carne e flutuava um pouco rumo ao imenso mas sentia o pavor humano daquilo que chamam aqui de morte e era obrigada a voltar. E como não descobrisse meio de partir e a vida social fosse me cutucando cada dia mais, decidi que era melhor botar um pé na Terra e achar meu canto. Negociar com o mundo alguma atividade menos dolorosa para meu ser etéreo. Deixar os seres humanos descansarem os olhos de mim e da minha ameaça de surtar ou desaparecer no buraco negro da tristeza. Habitar uma curva onde a realidade mandasse menos e eu pudesse estar no mundo e não. Foi assim que comecei a escrever. Primeiro um caderno, depois um curso de datilografia e uma máquina: e ganhei meu passaporte para o interior de mim, e entreguei aos homens um nome para me chamar. Eu e o mundo nos acomodamos um no outro e nos demos uma trégua. Aos poucos, fui fazendo outras pequenas concessões à encarnação que já não me assustava tanto: não soube ter um emprego, mas consegui vender minhas letras e pagar as contas, estabeleci aos trancos e barrancos um vínculo afetivo com um ser humano de outro sexo e quase morri de medo quando vi sairem de mim três crianças. Fui vendo nascer no meio da minha prepotente solidão, uma inesperada ternura pelo ser humano, o bocó do ser humano,  o ser humano cagão, competitivo, neurótico, fominha, desesperado. E me distraí daquela vontade de voltar pra estrela.  Descobri que podia ser intérprete da gente e suas dores, até porque os via de fora com os olhos de ET que não havia perdido. E assim estou aqui. Hoje penso que os alienígenas que me deixaram tinham um bom propósito e irão me contar quando vierem me tirar de dentro de um corpo bem velhinho. A acidentada experiência humana deve me transformar em algo que serei no meu próximo estágio e que pretendo encarar com menos resistência: uma larva, um protozoário, uma folha, um habitante de Krypton... Ou, se deixarem escolher, um ser mais evoluído, que chamamos aqui na Terra de cachorro.
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Comentários

  1. Sua crônica lembrou-me Drummond e a premonição do anjo:"Vai ser gauche na vida" rsrsrrsrsrs. Muito bom!
    Às vezes lembro da minha infancia e encontro respostas para várias coisas também...

    Bjo!

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  2. Tatiana Libbos24/10/11 10:18

    Querida, um dos seus melhores textos, me tocou profundamente...acho que tbém vim desse planeta que vc menciona...bjo

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